Ortodontia e DTM. São dois lados da mesma moeda? Uma especialidade guarda relação com a outra?
Será que nossos tratamentos ortodônticos podem curar uma DTM? Ou será que ele pode ser a causa de uma? Será que você deveria tentar tratar pacientes com DTM?
Já se fazem 30 anos desde o famoso caso de Michigan, em que um ortodontista americano foi condenado a indenizar um paciente por ter causado uma disfunção têmporo-mandibular no mesmo. Muita coisa mudou desde aquela época, tanto na especialidade da ortodontia, quanto na especialidade da disfunção têmporo-mandibular.
Porém, ainda existem várias crenças e dúvidas, principalmente por parte de ortodontistas na abordagem de pacientes portadores de DTM.
Esse mês entrevistamos a Dra. Juliana Stuginski Barbosa, especialista em DTM e dor orofacial, mestre e doutora pela USP, professore dos cursos de DTM e Dor Orofacial do IEO-Bauru e da ABOSC e membro da Sociedade brasileira de disfunção têmporomandibular e dor orofacial.
Se você quiser saber mais sobre o excelente trabalho da Dra. Juliana, confira seu blog Por Dentro da Dor Orofacial, com atualizações frequentes e material com ótimo embasamento científico!
Dr. Alexandre da Veiga Jardim – A disfunção têmporomandibular (DTM) é um conjunto de alterações musculares, neurológicas e articulares com uma grande prevalência na população. Existe algum perfil de paciente que o ortodontista deve estar mais atento no consultório como sendo um grupo de risco para desenvolvimento de DTM?
Dra. Juliana Stuginski Barbosa – Não existe especificamente um grupo de risco. Mas alguns fatores podem ser observados:
- Pacientes que apresentam hipermobilidade articular generalizada tem chance de desenvolver cliques articulares, e apesar da ortodontia não ser contra indicada, devem ser avisados (sobretudo que não é a mecânica que pode gerar estes problemas).
- Em segundo lugar e talvez mais importante, é preciso ficar atento aos pacientes que realizam bruxismo em vigília (apertam, encostam os dentes ou mantém a mandíbula numa mesma posição, com a musculatura contraída). Este é um fator de risco para desenvolvimento de dor por DTM. O mesmo se aplica a outros hábitos de vigília, como a onicofagia (roer de unhas). Dependendo do quão vigilante e focado for o paciente com relação ao aparelho ortodôntico, ele pode aumentar o hábito e assim dores surgirem após a instalação do aparelho.
- Por último, é bom entender que pacientes que apresentam insônia, depressão, transtornos de ansiedade, fibromialgia e outras dores crônicas, por problemas na forma como processam a dor, podem apresentar chance maior de desenvolver DTM muscular.
AVJ – A oclusão pode ser fator de risco para DTM?
JSB – Antigamente muito se falava sobre este assunto. Até hoje algumas pessoas
insistem neste conceito, o que é muito atrativo aos dentistas. Entretanto, ao longo do
tempo, em pesquisas e na prática clínica, percebeu-se que a má oclusão não era um fator
de risco importante para o aparecimento de algum tipo de DTM. O único fator que ainda
parece ter algum tipo de contribuição seria a perda de suporte posterior na perpetuação
de dores articulares (a teoria seria por aumento de carga na ATM). Mas mesmo assim,
nenhum estudo conseguiu até o momento comprovar de forma enfática isso.
AVJ – A ortodontia é capaz de tratar a DTM? Qual a conduta que o ortodontista deve ter quando observar um paciente com alterações articulares ou musculares na anamnese ortodôntica?
JSB – A ortodontia não é capaz de tratar uma DTM. O ortodontista deve estar atento aos sinais e sintomas de DTM que os pacientes possam apresentar antes de iniciar o tratamento ortodôntico.
Em caso de dor muscular e/ou articular, antes de solicitar a documentação ortodôntica é necessário o controle destes sintomas, uma vez que sabemos que a dor pode modificar a postura mandibular e o número de pontos de contato.
Caso o paciente apresente travamento da mandíbula ocasional, o ortodontista não deve iniciar o tratamento antes do diagnóstico preciso e controle pois o prognóstico é negativo, ou seja, estes pacientes apresentam chance de desenvolver travamento fechado por deslocamento de disco sem redução. Estes cuidados são essenciais para que a terapia ortodôntica não seja interrompida.
AVJ – A ortodontia pode ser a etiologia para o desenvolvimento de uma DTM? Como o ortodontista pode se prevenir clinicamente e legalmente quanto a esse problema?
JSB – Ortodontia em si não é um fator de risco para DTM e há uma série de estudos que corroboram este fato. É importante que o ortodontista observe e avise o paciente de sinais e sintomas de DTM e sobretudo não prometa melhora ou tratamento para uma DTM.
Também deve focar em fatores como bruxismo em vigília, hábitos parafuncionais em vigília (como onicofagia, morder objetos, etc) e controla-los sempre que possível. Se necessário, antes de iniciar o tratamento, encaminhe o paciente ao especialista em DTM e Dor Orofacial.
AVJ – O tratamento para a DTM inclui algumas abordagens muito difundidas como ajuste oclusal e outras mais novas como botox, principalmente no caso de bruxismo. Como está a evidência científica atual quanto a essas abordagens?
JSB – Ajuste oclusal não é indicado para tratamento de DTM. Existem vários estudos e uma revisão sistemática com meta-análise que avaliou toda a literatura e contraindica seu uso para este fim.
Com relação à toxina botulínica, apesar de tão difundida, existem poucos estudos realizados e metodologicamente fracos que assegurem o uso desta técnica até os dias atuais. Os estudos também não indicam para qual tipo de DTM muscular ela deve ser utilizada, e sabemos que DTM é um termo genérico para vários tipos de diagnóstico.
Ainda sobre toxina, a professora Karen Raphael com apoio do Ministério da Saúde dos EUA está estudando os efeitos colaterais do uso repetido da toxina botulínica, e mostrou num trabalho ainda piloto que o uso em músculos mastigatórios poderia levar a osteopenia do côndilo mandibular, o que também é encontrado em estudos em animais.
De fato, em casos de dor, a toxina parece agir não em neurônios motores (como quando se reduz força muscular) mas em neurônios sensitivos, reduzindo a liberação de alguns produtos neuroquímicos. Entretanto, não se sabe, por exemplo, qual o efeito preciso na dor por DTM muscular, quantas aplicações são necessárias e ainda, e mais importante, se esta técnica é mais eficaz do que as infiltrações e agulhamentos que já realizamos há anos com sucesso nos pacientes. Acredito que pesquisas com este enfoque devam ser realizadas. Por estes motivos, sobretudo o último, eu particularmente não utilizo em primeira escolha para tratamento na DTM mas como uma terapia adjuvante em alguns casos.
O mesmo se aplica para bruxismo. Primeiro deve-se entender que existem vários tipos de bruxismo. Em bruxismo secundário a toxina não deve ser empregada. Em caso de bruxismo do sono primário, seu uso é indicado em casos específicos onde se deseja redução de força muscular e não elimina a necessidade de uso de dispositivos interoclusais, uma vez que os eventos de bruxismo do sono perpetuam e ainda, músculos como pterigoideo lateral e medial não são afetados.
AVJ – Qual o exame ideal para observar alterações articulares? A tomografia é indicada?
JSB – Depende da alteração que deseje observar. A tomografia computadorizada é exame de referência para alterações ósseas, como problemas degenerativos (osteoartrose, osteoartrite, etc) ou mesmo de crescimento (hiperplasias).
Já para visualizar problemas mecânicos da ATM, como deslocamento do disco articular, o exame de eleição é a ressonância magnética.
Cirurgião-dentista, especialista em ortodontia pela ABO-GO com 10 anos de experiência. Mestre e doutorando em ciências da saúde pela UFG. Professor nas universidades Fasam e Integra, membro da diretoria da Associação Brasileira de Ortodontia (ABOR-GO). Credenciado no sistema Invisalign e apaixonado por ensino, música e tecnologia. Artigos publicados neste blog, sites e revistas científicas.