Existem vários tipos de artigos científicos sendo publicados, de relatos de casos à revisões sistemáticas. Milhares de artigos são publicados todo mês e quem quer se manter atualizado precisa saber o que está lendo. Mas se você quer pesquisar se um tipo de tratamento é útil para seu paciente, como saber a qual tipo de artigo recorrer? Uma dica: use a Pirâmide de Evidência Científica!
Esse é um artigo da nossa coluna Academia, voltada para análise de artigos científicos.
A pirâmide de evidência científica, da base ao topo
“Qualquer verdade é melhor do que a dúvida”
Sherlock Holmes, A face amarela.
Todos sabem o que é uma pirâmide. Uma estrutura formada por triângulos, com a base mais larga que o topo. É uma estrutura sólida e firme, justamente pela sua forma, onde o topo, menor é sustentado pela base, maior.
A pirâmide de evidência científica não é muito diferente. Uma base larga, formada por artigos científicos de menor qualidade de evidência ajuda a construir a pirâmide que chega ao topo com artigos de alta qualidade.
A forma de pirâmide é um resultado natural de como a pesquisa científica se desenvolve. Apesar de serem artigos com mais “poder”, os artigos do topo não poderiam existir sem os artigos da base que vieram antes. E artigos da base são publicados em maior quantidade, pois além de serem razoavelmente mais fáceis e baratos de se realizar que alguns artigos do topo, são o primeiro passo para o teste de intervenções e estudos mais complexos.
A base da pirâmide de evidência científica: pesquisas animais e in vitro
Estudos em laboratório e em animais são a base da pirâmide. Muitos estudos do topo da pirâmide começam aí, principalmente quando são intervenções que podem ser perigosas para os pacientes. O problema desses tipos de estudo é que eles geralmente seus resultados não podem ser aplicados com rigor em nosso consultório. Animais são diferentes de humanos e os resultados de um estudo em laboratório e não devem ser extrapolados diretamente para a prática clínica 1
Estudos in vitro (do latim: no vidro) são estudos que não são feitos em seres vivos, geralmente em um laboratório. São a base para praticamente qualquer intervenção e muitos estudos grandes começam com o que se chama de estudo piloto: um estudo preliminar feito em laboratório para se “calibrar” o estudo clínico que será feito futuramente. Na ortodontia, muitas variáveis como osso, musculatura da boca, saliva, biomecânica, forças oclusais de mastigação e repouso, e muitas outras, não podem ser reproduzidas fielmente em laboratório. Por isso, é importante sempre avaliar esses artigos criticamente.
Um exemplo, na postagem passada falamos sobre torques. Boa parte dos estudos usados foram estudos feitos in-vitro. Como é difícil fazer as avaliações desejadas pelos pesquisadores em pacientes, foram usados testes em laboratório. Como existem muitas variáveis que não são levadas em conta nesses estudos, podemos imaginar que ao transferir para nossa clínica esses resultados, eles talvez sejam ainda piores do que os obtidos nos artigos.
Outro exemplo seriam estudos realizados em animais. Muitas intervenções são impossíveis de serem feitas em humanos por motivos éticos. Asschericlx 2 e colegas queriam saber o que acontece quando um mini-implante encosta na raiz de um dente. Por motivos óbvios, seria difícil que um comitê de ética permitisse que os pesquisadores saíssem perfurando raízes de pacientes para avaliar. Então, os pesquisadores usaram cachorros Beagle. Porém, Kadioglou et al3 conseguiram realizar esse estudo em pré-molares de humanos que seriam extraídos, o que torna seu estudo mais confiável ainda.
Apesar de não serem artigos do topo da pirâmide, esses artigos têm um grande valor quando bem interpretados e é um erro achar que não merecem consideração 4. Muitas vezes, vão ser a única resposta disponível no momento e nessas horas, qualquer verdade é melhor do que a dúvida.
Muito legal…mas eu não sou pesquisador e não leio muitos artigos. Eu prefiro frequentar cursos e palestras.
Você pode achar que isso não te interessa se você não estiver envolvido em pesquisa, não é?
Mas vamos imaginar uma situação hipotética…
Você está em um congresso e resolve assistir um curso sobre um novo tipo de técnica. Vamos imaginar uma coisa nova, como um bracket que não usa ligaduras elásticas e promete ter menos atrito e com isso um tratamento mais rápido. O palestrante está mostrando resultados incríveis com gráficos que prometem uma redução de atrito incrível. Algo assim:
Porém, você percebe que os dados são de um estudo in vitro e fica desconfiado. Ao pesquisar mais você descobre que esse gráfico não leva em conta a inclinação do dente durante a movimentação, o que resulta em um atrito similar ao de um bracket convencional. Nesse caso o atrito aumenta a medida que o fio se torna mais calibroso de maneira similar nos dois tipos de bracket.
Por ser um estudo in vitro, algumas variáveis não foram levadas em conta no primeiro gráfico e no caso de brackets auto-ligantes, muitos estudos em laboratório que avaliavam o atrito não consideraram a inclinação dos dentes, que causa binding. Mas isso não foi um problema para os fabricantes na hora de divulgar os resultados.
Isso aconteceu de verdade e a empresa quando anunciou o lançamento do bracket, convenientemente se esqueceu de colocar o segundo gráfico. Proffit e Burrows abordaram esse assunto em uma entrevista de 2013 do JCO 5. No site da empresa a matéria original foi retirada do ar 6.
Se você não consegue analisar a informação que te vendem de maneira crítica, vai acabar tendo suas decisões clínicas tomadas pelos fabricantes e vendedores de materiais odontológicos. E isso é o melhor para o seu paciente?
- Burrow SJ. Friction and resistance to sliding in orthodontics: A critical review. Ajodo 2009; 135:442-7 ↩
- Asscherickx K, Vannet B V, Wehrbein H, Sabzevar M M. Success rate of miniscrews relative to their position to adjacent roots. European Journal of Orthodontics 2008; 30: 330–335 ↩
- Kadioglu O, Buyukyilmaz T, Zachrisson B U, Maino B G. Contact damage to root surfaces of premolars touching miniscrews during orthodontic treatment. Ajodo 2008; 134: 353–360 ↩
- Greenhalgh T. How to read a paper. 2ª ed. BMJ Books, Londres. 2001. ↩
- Burrow SJ, Proffit WR, Keim RG. JCO Interviews Drs. S.J. “Jack” Burrow and William R. Proffit on the Efficacy of Self-Ligating Brackets. J Clin Ortho 2013;47(7):413-8. ↩
- Thorstenson, G.: SmartClip self-ligating brackets frictional study, Orthodontic Perpectives, 3M Unitek, Monrovia, CA, Vol. 12, No. 1, 2005, pp. 8-11. ↩
Cirurgião-dentista, especialista em ortodontia pela ABO-GO com 10 anos de experiência. Mestre e doutorando em ciências da saúde pela UFG. Professor nas universidades Fasam e Integra, membro da diretoria da Associação Brasileira de Ortodontia (ABOR-GO). Credenciado no sistema Invisalign e apaixonado por ensino, música e tecnologia. Artigos publicados neste blog, sites e revistas científicas.