Desde que foi idealizado por Andrews 1, o sistema pré-ajustado se mostrou uma das revoluções da ortodontia. Nosso trabalho foi imensamente facilitado, as consultas ficaram mais rápidas e houve menos necessidade de habilidade manual por parte do ortodontista, delegando dobras de primeira, segunda e terceira ordem para os brackets.
Que o sistema straight-wire veio para ficar é fato. Porém, se quisermos oferecer o melhor para nossos pacientes, devemos estar atentos às limitações dos nossos materiais de trabalho. Brackets e fios são peças fundamentais da nossa prática diária. A expressão de torque é uma das grandes dificuldades dos sistemas straight-wire e pode ser afetada por vários fatores como:
- Alterações da anatomia da coroa do dente.
- A posição inicial do dente.
- Alterações periodontais, que deslocam o centro de resistência do dente.
- Alterações no processo de fabricação do bracket, que raramente está nas especificações do fabricante.
- Variações entre os materiais do bracket, onde nota-se que brackets estéticos expressam torques com menos qualidade.
- Alterações na forma e tamanho do slot do bracket na sua fabricação.
- A espessura do adesivo entre o bracket e a coroa do dente.
- Variações na distância interbracket.
- Alterações no tamanho dos fios, que também raramente são do tamanho especificado pelos fabricantes.
- Alterações nas bordas do fios, que são geralmente arredondadas e diferentes entre si.
- O tipo de ligação.
- Deformações que o bracket sofre durante o tratamento.
- A quantidade de folga entre o fio e o bracket.
- A posição do bracket na coroa.
- Alterações de inclinação da coroa causadas pelo uso de elásticos, principalmente os de intercuspidação.
A pergunta então é: Você pode depender 100% do seu bracket para ter o torque que deseja? E também, será que as diferenças entre as várias prescrições são tão significantes assim?
A anatomia dentária pode afetar o torque do bracket?
Sim, alterações na anatomia da coroa podem causar variações na inclinação do bracket, o que por sua vez altera a quantidade de torque quando o fio é inserido 2.
A qualidade do periodonto também têm um papel importante aí, pois a medida que existe uma perda óssea, o centro de resistência do dente também é deslocado, e a expressão do torque é afetada justamente por isso 3. Esse efeito também afeta a estabilidade do tratamento.
Além do mais, a inclinação inicial do dente pode ser um fator que altera a quantidade de torque que ele recebe 4.
Qual slot expressa melhor o torque? 0.018″ ou 0.022″?
Existe evidência que fios 0.019×0.025″ em um slot 0.022″ produz menos torque do que um fio 0.017×0.025″ em um slot 0.018.5. Isso acontece porque existe menos folga entre o fio e o bracket no sistema 0.018.
Os brackets em geral expressam bem o torque?
Infelizmente existe uma grande variabilidade na fabricação dos brackets. Além de serem geralmente maiores do que as dimensões relatadas pelos fabricantes, as paredes laterais variam na sua forma, sendo convergentes, divergentes ou retas. Tudo isso cria variáveis na expressão dos torques que não podem ser previstas pelo clínico6.
Outro fator a ser levado em conta é a deformação que muitos desses brackets sofrem durante o tratamento ortodôntico. Um incisivo central na prescrição Roth tem um torque de 14º. Se um bracket sofre uma deformação, mesmo que mínima, pode-se imaginar que esse torque já será bastante afetado 7.
O material do bracket também influencia e existe evidência que brackets plásticos sofrem maior deformação que os metálicos 8.
E quanto aos fios?
Fios de níquel titânio expressam muito mal os torques. Fios de aço e Beta-Titânio tendem a expressar o torque melhor, sendo mais precisos.
Porém, existe uma grande variação na fabricação desses fios. Suas dimensões estão na maior parte das vezes maiores ou menores do que a especificada pelos fabricantes, havendo variação de -6,47% a +5,10% do tamanho real em relação às especificações 9.
Os fios também tendem a ter quinas arredondadas, isso ocorre devido ao próprio processo de fabricação. A quina arredondada causa uma perda tanto na rigidez do fio quanto na maneira como se dá o contato desse fio com a parede do bracket, dois pontos essenciais na expressão de torque. As quinas dos fios variam entre si. O resultado clínico disso é que o mesmo fio pode expressar torque de maneira diferente se ele for colocado “de cabeça para cima ou cabeça para baixo”[xyz-ihs snippet=”sup”]9[xyz-ihs snippet=”sup2″].
Aparelhos autoligados expressam o torque melhor que os convencionais?
Apesar de os fabricantes terem apontado que a melhor expressão do torque da coroa é uma das qualidades dos aparelhos autoligados, isso infelizmente está longe da realidade dos estudos clínicos. Um dos motivos é a fadiga dos clipes de brackets autoligados, que geralmente são feitos de NiTi e estão sujeitos a perda de sua resistência com o uso em alguns casos 10. E pode ser que o papel do clipe do autoligado seja superestimado pelos fabricantes, principalmente na expressão de torque 11 Além do mais, brackets autoligados não estão livres dos vários problemas listados anteriormente.
O que isso significa clinicamente?
A maioria desses estudos é in vitro e seus resultados são diferentes quando extrapolados para prática clínica. Porém, eu acho que os resultados das prescrições tendem a ser ainda piores quando adicionamos as inúmeras variáveis que um paciente tem quando comparado a um ambiente laboratorial controlado.
As alterações do torque in-vivo pelos sistemas ortodônticos atuais podem ser insignificantes clinicamente na maior parte dos casos. Com certeza a expressão de torque é importante em casos com uso de elásticos de Classe II e Classe III, casos de extração, retração, agenesia e ectopia de dentes anteriores.
O importante é saber que não temos tanto controle quanto os fabricantes de materiais ortodônticos querem nos fazer imaginar e talvez aquele bracket mágico não seja tão mágico assim. E que devemos tomar cuidado com o que esses fabricantes tentam nos vender, pois mesmo anúncios com apoio de estudos científicos nem sempre tem credibilidade 12.
Ainda não estamos livres de ter que saber como fazer ocasionalmente dobras de terceira ordem como Andrews imaginou tantos anos atrás. Mas… se fosse fácil demais não teria graça né?
- Andrews, L.F. Straight wire—the concept and appliance. L. A. Wells Co, San Diego;1989 ↩
- Miethke, RR. Melsen, B. Effect of variation in tooth morphology and bracket position on first and third order correction with preadjusted appliances. Ajodo. 199; 116:329-335 ↩
- Melsen B. Adult Orthodontics. Wiley-Blackwell. 2012. Edição Ipad ↩
- Maltagliati L. Racionalizando a individualização dos torques: uma proposta de simplificação. 1º Congresso OrthoScience. 2016 ↩
- Sifakakis et al. Torque expression of 0.018 and 0.022 inch conventional brackets. Eur J of Ortho. 2013. 35: 610-614 ↩
- Cash et al. An evaluation of slot size in orthodontic brackets – Are standards as expected? Angle. 2004. 74 (4): 450-453 ↩
- Kapur R, Sinha P, Nanda R. Comparison of load transmission and bracket deformation between titanium and stainless steel brackets. AJODO. 1999; 116:275-278 ↩
- Gmyrek H, Bourauel C, Richte G, Harzer W. Torque capacity of metal and plastic brackets with reference to materials, application, technology and biomechanics. J Orofac Orthop. 2002; 63:113-128 ↩
- Lombardo et al. Comparative analysis of real and ideal wire-slot play in square and retangular archwires. Angle Orth. 2015; 85: 848-858 ↩
- Pandis N, Bourauel C, Eliades T. Changes in the stiffness of the ligating mechanism in retrieved active self-ligating brackets. Ajodo. 2007;132(6):834–837. ↩
- Brauchli LM, Steineck M, Wichelhaus A. Active and passive self-ligation: a myth? Part 1: torque control. Angle. 82:663-669 ↩
- Livas et al. Are claims made in orthodontic journal advertisements evidence-supported? Angle Orth. 2015. 85(2): 184-188 ↩
Cirurgião-dentista, especialista em ortodontia pela ABO-GO com 10 anos de experiência. Mestre e doutorando em ciências da saúde pela UFG. Professor nas universidades Fasam e Integra, membro da diretoria da Associação Brasileira de Ortodontia (ABOR-GO). Credenciado no sistema Invisalign e apaixonado por ensino, música e tecnologia. Artigos publicados neste blog, sites e revistas científicas.